O Padre Pedro
José de Castro e Silva faleceu em 29/01/1890 em Fortaleza. Era um homem muito
rico, com várias propriedades e residia, na época da sua morte, a Rua Senador
Pompeu, antiga Rua da Amélia, do lado da sombra no número 210. Muito antes
comprara oito casas vizinhas e conjugadas a sua e dera para cada um dos seus filhos.
Já muito
adoentado, no leito da morte, mandou chamar o tabelião de Fortaleza, bem cedo
ao raiar do dia, para fazer o testamento. Este o encontrou já nos últimos estertores.
Recebeu e registrou os legados dos filhos (o Padre os chamava de sobrinhos),
que saíram por entre soluços da pré-agonia.
Gustavo Barroso
em seu livro Liceu do Ceará (*) conta que o tabelião disse ao padre que tinha
conhecimento da existência de um herdeiro legítimo, não nomeado no testamento,
e que era dever dele lembrá-lo para que não houvesse omissão.
O Padre indagou
em voz sumida:
- Quem é?
O tabelião
nomeou-o:
- O Dr. Manuel
Ambrósio da Silveira Torres Portugal, seu sobrinho.
O moribundo
recostou-se mais nos travesseiros e, fazendo o gesto vulgarmente chamado de
armas de São Francisco, expirou com essas palavras:
- Deixo-lhe uma
banana!
Por essa razão,
em Fortaleza, quando se perguntava a alguém o que havia deixado um parente rico
acabado de morrer, a resposta era fatal: uma banana!
Esse rancor do
Padre, transformado em cólera, ao sobrinho era reflexo de sério desentendimento
que tivera com seu cunhado, o português Manuel Antonio Torres Portugal, pai de
Manuel Ambrósio, por questões financeiras e de propriedade. O português o
acusara de vender seu estabelecimento situado na cidade de Jardins, CE, e de
não ter recebido o dinheiro da venda. Por sua vez, o padre o acusava de ser
ingrato, pois o ajudara na sua chegada e instalação em Fortaleza vindo de
Portugal. Essa desavença se estendeu por vários anos.
O velório
começou no domicílio do Padre no mesmo dia e foi até o fim da tarde do dia
seguinte à espera do filho que morava na região de Redenção, Ce. Puseram o
caixão na sala de visita, ladeado por quatro
velas enormes que deveriam arder até o fim e na porta de entrada da casa uma
negra cortina com uma grande cruz prateada ao centro. Irmãs, filhos e filhas,
cunhados e cunhadas choramingavam pelos cantos, rezando o terço freneticamente.
A noite foi longa, a espera do dia seguinte.
Naquela época não existiam automóveis
para derradeira viagem. Os enterros eram verdadeiras procissões, a pé, que
podiam se estender por quilômetros. No dia seguinte, abria o préstito
uma cruz negra de cujo pedestal pendia uma saia, que era um pano de veludo
preto com franjas douradas. A frente ia o cura da Sé (catedral) paramentado e
dois coroinhas, e logo atrás vinha o féretro, levado por quatro homens,
vestidos de casacas compridas pretas, com cartolas de oleado reluzente e calças
com listras vermelhas. Esses homens eram chamados de Gatos-Pingados.
Otacílio de Azevedo conta no
seu livro Fortaleza Descalça (**) que os Gatos-Pingados eram um dos aspectos
mais curiosos da Fortaleza antiga. Eram
contratados para levar o defunto ao cemitério. O pesado esquife era equilibrado
sobre duas tábuas em cujas pontas havia aldrabas seguras pelas mãos enluvadas
dos sinistros carregadores, num ritmo macabro e cadenciado. O caixão dançava
naquelas mãos num vaivém funambulesco, arrancando lágrimas nos olhos da
população curiosa que se aglomerava no trajeto até o cemitério. Quando o
cortejo era pequeno, costumava-se dizer “não deu quase ninguém, só alguns gatos
pingados!”. Creio que o nome dado se deve a duas coisas: a vestimenta preta,
como se fosse um gato preto, representa a má sorte que atingiu o defunto e o
pingado é a cachaça (pinga) que esses homens tomavam antes e depois do enterro.
O acompanhamento foi feito por homens e mulheres, todos de
luto, silenciosos e compungidos. A procissão se estendeu por quase 1.000 metros, ao longo
da rua das Flores, hoje rua Castro e Silva, (daí talvez a origem do antigo nome
da rua). Tão grande percurso, realizado sob as intempéries da natureza e sobre
um calçamento pouco convidativo às longas caminhadas, assumia contornos de
sacrifício. Em certo momento, um dos gatos-pingados tropeçou em uma das pedras
soltas e quase caiu, mas ajudado pelos outros o cortejo logo seguiu. A noite se
aproximava e tochas e archotes foram acesas, costume antigo e lúgubre. O ritmo
era tão lento que parecia que os vivos não tinham pressa em se verem livres dos
mortos, nem estes pressa em se verem livres dos vivos.
Terminado o préstito, os acompanhantes retornaram
pesarosos, silenciosos e tristes. No dia seguinte os parentes do Padre adotaram
os costumes da época. Durante um mês, a família só
saia de casa para assistir a missa do sétimo e do trigésimo dia. Só escrevia
cartas tarjadas de preto e usava luto fechado – os homens, terno preto,
inclusive a camisa, as mulheres, vestido comprido e totalmente negro, a cabeça
coberta com um véu. Naquela época, desoladas viúvas e viúvos trajavam luto
fechado pelo resto da vida.
O próximo artigo
abordará estórias e “causos” do padre Pedro.
(*)
BARROSO, Gustavo. Memórias. Liceu do Ceará. 3. ed. Fortaleza: Casa de José
de Alencar - UFC, 2000.
(**) AZEVEDO, Otacílio de. Fortaleza descalça:
reminiscências. 2. ed. Fortaleza: Casa de José de Alencar - UFC, 1992