terça-feira, 8 de junho de 2021

O Préstito do Padre Pedro

O Padre Pedro José de Castro e Silva faleceu em 29/01/1890 em Fortaleza. Era um homem muito rico, com várias propriedades e residia, na época da sua morte, a Rua Senador Pompeu, antiga Rua da Amélia, do lado da sombra no número 210. Muito antes comprara oito casas vizinhas e conjugadas a sua e dera para cada um dos seus filhos.

Já muito adoentado, no leito da morte, mandou chamar o tabelião de Fortaleza, bem cedo ao raiar do dia, para fazer o testamento. Este o encontrou já nos últimos estertores. Recebeu e registrou os legados dos filhos (o Padre os chamava de sobrinhos), que saíram por entre soluços da pré-agonia.

Gustavo Barroso em seu livro Liceu do Ceará (*) conta que o tabelião disse ao padre que tinha conhecimento da existência de um herdeiro legítimo, não nomeado no testamento, e que era dever dele lembrá-lo para que não houvesse omissão.

O Padre indagou em voz sumida:
- Quem é?

O tabelião nomeou-o:
- O Dr. Manuel Ambrósio da Silveira Torres Portugal, seu sobrinho.

O moribundo recostou-se mais nos travesseiros e, fazendo o gesto vulgarmente chamado de armas de São Francisco, expirou com essas palavras:
- Deixo-lhe uma banana!

Por essa razão, em Fortaleza, quando se perguntava a alguém o que havia deixado um parente rico acabado de morrer, a resposta era fatal: uma banana!

Esse rancor do Padre, transformado em cólera, ao sobrinho era reflexo de sério desentendimento que tivera com seu cunhado, o português Manuel Antonio Torres Portugal, pai de Manuel Ambrósio, por questões financeiras e de propriedade. O português o acusara de vender seu estabelecimento situado na cidade de Jardins, CE, e de não ter recebido o dinheiro da venda. Por sua vez, o padre o acusava de ser ingrato, pois o ajudara na sua chegada e instalação em Fortaleza vindo de Portugal. Essa desavença se estendeu por vários anos.

O velório começou no domicílio do Padre no mesmo dia e foi até o fim da tarde do dia seguinte à espera do filho que morava na região de Redenção, Ce. Puseram o caixão na sala de visita, ladeado por quatro velas enormes que deveriam arder até o fim e na porta de entrada da casa uma negra cortina com uma grande cruz prateada ao centro. Irmãs, filhos e filhas, cunhados e cunhadas choramingavam pelos cantos, rezando o terço freneticamente. A noite foi longa, a espera do dia seguinte.

Naquela época não existiam automóveis para derradeira viagem. Os enterros eram verdadeiras procissões, a pé, que podiam se estender por quilômetros. No dia seguinte, abria o préstito uma cruz negra de cujo pedestal pendia uma saia, que era um pano de veludo preto com franjas douradas. A frente ia o cura da Sé (catedral) paramentado e dois coroinhas, e logo atrás vinha o féretro, levado por quatro homens, vestidos de casacas compridas pretas, com cartolas de oleado reluzente e calças com listras vermelhas. Esses homens eram chamados de Gatos-Pingados.

Otacílio de Azevedo conta no seu livro Fortaleza Descalça (**) que os Gatos-Pingados eram um dos aspectos mais curiosos da Fortaleza antiga. Eram contratados para levar o defunto ao cemitério. O pesado esquife era equilibrado sobre duas tábuas em cujas pontas havia aldrabas seguras pelas mãos enluvadas dos sinistros carregadores, num ritmo macabro e cadenciado. O caixão dançava naquelas mãos num vaivém funambulesco, arrancando lágrimas nos olhos da população curiosa que se aglomerava no trajeto até o cemitério. Quando o cortejo era pequeno, costumava-se dizer “não deu quase ninguém, só alguns gatos pingados!”. Creio que o nome dado se deve a duas coisas: a vestimenta preta, como se fosse um gato preto, representa a má sorte que atingiu o defunto e o pingado é a cachaça (pinga) que esses homens tomavam antes e depois do enterro.   

O acompanhamento foi feito por homens e mulheres, todos de luto, silenciosos e compungidos. A procissão se estendeu por quase 1.000 metros, ao longo da rua das Flores, hoje rua Castro e Silva, (daí talvez a origem do antigo nome da rua). Tão grande percurso, realizado sob as intempéries da natureza e sobre um calçamento pouco convidativo às longas caminhadas, assumia contornos de sacrifício. Em certo momento, um dos gatos-pingados tropeçou em uma das pedras soltas e quase caiu, mas ajudado pelos outros o cortejo logo seguiu. A noite se aproximava e tochas e archotes foram acesas, costume antigo e lúgubre. O ritmo era tão lento que parecia que os vivos não tinham pressa em se verem livres dos mortos, nem estes pressa em se verem livres dos vivos.

Terminado o préstito, os acompanhantes retornaram pesarosos, silenciosos e tristes. No dia seguinte os parentes do Padre adotaram os costumes da época. Durante um mês, a família só saia de casa para assistir a missa do sétimo e do trigésimo dia. Só escrevia cartas tarjadas de preto e usava luto fechado – os homens, terno preto, inclusive a camisa, as mulheres, vestido comprido e totalmente negro, a cabeça coberta com um véu. Naquela época, desoladas viúvas e viúvos trajavam luto fechado pelo resto da vida.

O próximo artigo abordará estórias e “causos” do padre Pedro.

(*) BARROSO, Gustavo. Memórias. Liceu do Ceará. 3. ed. Fortaleza: Casa de José de Alencar - UFC, 2000.

(**) AZEVEDO, Otacílio de. Fortaleza descalça: reminiscências. 2. ed. Fortaleza: Casa de José de Alencar - UFC, 1992

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário