quarta-feira, 16 de junho de 2021

A Ditadura da Minoria - 2a e Última Parte

Renormalização

Para analisar como a minoria aumenta suas preferências sobre as vontades da maioria emprega-se um método chamado de grupo de renormalização, um poderoso aparato da matemática, que permite investigar como as coisas aumentam (ou diminuem) na regra da minoria. 



A Figura 1 mostra uma sequencia de caixas semelhantes que apresentam as mesmas propriedades do conjunto de Cantor (https://pt.wikipedia.org/wiki/Conjunto_de_Cantor). Cada caixa contém quatro caixas menores. Cada uma das quatro caixas menores contém mais quatro caixas menores ainda, até chegarmos a um determinado nível de tamanho. Essa figura denota uma autosimilaridade fractal (https://pt.wikipedia.org/wiki/Fractal). Na 1ª caixa existem duas cores: amarelo para a maioria, e rosa para a minoria.

A 1ª caixa da figura está dividida em 4 caixas menores, onde cada caixa está em um quadrante do plano cartesiano cujo centro é o mesmo da caixa maior. Por sua vez, a caixa do quadrante IV (corresponde a caixa que está na parte de baixo a direita) está dividida em outras 4 caixas menores, sendo que uma delas está na cor rosa. Suponha que a caixa do quadrante IV represente uma família de quatro pessoas. Um delas está na minoria intransigente (caixa rosa contida no quadrante IV) e come apenas comida AGM free (Alimentos Geneticamente Modificados). Os outros membros da família estão na cor amarela. Suponha que a filha teimosa (caixa rosa contida no quadrante IV) consegue impor sua regra aos outros três membros e, consequentemente, a unidade (família) assume a cor toda rosa, ou seja, opta por comida AGM free (2ª caixa da figura). Houve então a primeira renormalização.  

Agora, suponha toda a família indo para um churrasco com a participação de outras três famílias. Como eles são conhecidos por comer apenas AGM free, os anfitriões cozinharão apenas comidas não modificadas geneticamente. A mercearia local percebendo que a vizinhança agora é apenas comedora de AGM free, resolve vender este tipo de alimento para simplificar a vida, o que impacta no atacadista local, e as histórias se repetem e se “renormalizam”. A última caixa da figura (enésima caixa) está toda na cor rosa após várias renormalizações.

O físico francês Serge Galam (https://en.wikipedia.org/wiki/Serge_Galam) foi o primeiro a aplicar essa técnica de renormalização às questões sociais e à ciência política. Imagine que um partido de extrema esquerda ou de direita tem o apoio de dez por cento da população. Então, seu candidato teria dez por cento dos votos? A resposta é não. Esses eleitores da base devem ser classificados como "inflexíveis" e sempre votarão no candidato do seu partido. Mas alguns dos eleitores flexíveis também podem votar nesse partido e essas pessoas são as únicas a serem observadas, pois podem aumentar o número de votos para o partido extremista. Os modelos de Galam produziram uma série de efeitos contra intuitivos na ciência política e suas previsões mostraram-se muito mais próximas dos resultados reais do que o consenso da maioria.

No exemplo anterior da família e da renormalização foi visto o efeito do “veto”, ou seja, uma pessoa em um grupo pode orientar as escolhas. Isto explica por que algumas cadeias de fastfood, como o McDonald's, prosperam, não porque oferecem um ótimo produto, mas porque não são vetadas em um determinado grupo sócio-econômico. Quando há poucas escolhas, o McDonald's parece ser uma aposta segura. Pizza é a mesma história: é uma comida aceita comumente para refeição noturna, pois ninguém ficará aborrecido por comer pizza no jantar.

Nassim Taleb concluiu que todo o crescimento da sociedade, seja econômica ou moral, vem de um pequeno número de pessoas. O risco de incertezas tem um papel preponderante na condição da sociedade. A sociedade não evolui por consenso, votação, maioria, comitês, reuniões verbais, conferências acadêmicas e pesquisas. A sociedade evolui quando poucas pessoas são suficientes para mover o mundo de maneira desproporcional. Tudo o que se precisa é de uma regra assimétrica em algum lugar, e a assimetria está presente em quase tudo.


 

segunda-feira, 14 de junho de 2021

A Ditadura da Minoria - 1a Parte

Em agosto de 2016 Nassim Taleb escreveu um artigo interessante, em inglês, sobre a ditadura da pequena minoria. Nassim Taleb é um autor de livrosestatístico e analista de riscos (https://en.wikipedia.org/wiki/Nassim_Nicholas_Taleb). Seus livros tratam das incertezas e dos eventos imprevisíveis. Pessoas e empresas podem se beneficiar e até crescer com certos eventos imprevisíveis, segundo ele. Uma interpretação resumida do artigo de Nassim é apresentada a seguir.

Há situações em que uma minoria intransigente, talvez 3% ou 4% da população total, é suficiente para submeter suas preferências a todos indivíduos. Um observador ingênuo ficaria com a impressão de que as escolhas e preferências são as da maioria, mas não são. Parece absurdo. Instituições acadêmicas e científicas não estão preparadas para identificar esse tipo de comportamento e fazem julgamentos precipitados, principalmente quando os sistemas são complexos.

A idéia principal por trás de sistemas complexos é que todo o conjunto se comporta de maneira não prevista pelos componentes. As interações importam mais do que a natureza das unidades. Por exemplo, estudar formigas de forma individual nunca nos dará uma idéia de como funciona a colônia de formigas. Para isso, é preciso entender uma colônia de formigas, como ela se comporta. Isso é chamado de propriedade "emergente" do todo, pela qual partes e todo diferem, porque o que importa são as interações entre as partes. As interações podem obedecer a regras muito simples. A regra discutida neste artigo é a regra da minoria.

A regra da minoria mostra que é preciso ter um pequeno número de pessoas intolerantes, mas virtuosas, corajosas e arrojadas, para a sociedade funcionar adequadamente. Exemplos da regra da minoria são dados a seguir.

Uma pessoa com deficiência não usará o banheiro regular, mas uma pessoa sem deficiência usará o banheiro para pessoas com deficiência”. Na prática, às vezes hesitamos em usar o banheiro para deficientes sob a crença de que o banheiro é reservado para uso exclusivo deles.

Alguém com alergia a amendoim não vai comer produtos que tenham como ingrediente o amendoim, mas uma pessoa sem tal alergia pode comer produtos sem traços de amendoim”. Isto explica por que é tão difícil encontrar amendoins em aviões.

Uma pessoa honesta nunca cometerá atos criminosos, mas um criminoso pode se envolver prontamente em atos legais”. Lampião e Pablo Escobar são exemplos.  

A minoria forma um grupo intransigente e a maioria um grupo flexível. A regra é assimétrica em relação às escolhas. Mas para que a regra da minoria aconteça, duas coisas são importantes. Primeiro, a estrutura espacial da distribuição da minoria. Faz uma grande diferença se os intransigentes estão em seu próprio bairro ou se estão misturados com o resto da população. Por exemplo, se as pessoas que seguem um governo minoritário vivem em guetos, com sua pequena economia separada, então a regra da minoria não se aplica. Mas, quando uma população tem uma distribuição espacial uniforme e a proporção de tal minoria é a mesma no bairro, cidade, estado e país, então a maioria (flexível) poderá se submeter à regra da minoria. Em segundo lugar, a estrutura de custos é importante. Por exemplo, uma indústria de alimentos que oferta produtos AGM (alimentos geneticamente modificados) e AGM free (naturais). Se a diferença de custos na produção desses alimentos for pouca, então é preferível produzir somente AGM free, uma vez que atende tanto a maioria flexível quanto à minoria intransigente. 

terça-feira, 8 de junho de 2021

O Préstito do Padre Pedro

O Padre Pedro José de Castro e Silva faleceu em 29/01/1890 em Fortaleza. Era um homem muito rico, com várias propriedades e residia, na época da sua morte, a Rua Senador Pompeu, antiga Rua da Amélia, do lado da sombra no número 210. Muito antes comprara oito casas vizinhas e conjugadas a sua e dera para cada um dos seus filhos.

Já muito adoentado, no leito da morte, mandou chamar o tabelião de Fortaleza, bem cedo ao raiar do dia, para fazer o testamento. Este o encontrou já nos últimos estertores. Recebeu e registrou os legados dos filhos (o Padre os chamava de sobrinhos), que saíram por entre soluços da pré-agonia.

Gustavo Barroso em seu livro Liceu do Ceará (*) conta que o tabelião disse ao padre que tinha conhecimento da existência de um herdeiro legítimo, não nomeado no testamento, e que era dever dele lembrá-lo para que não houvesse omissão.

O Padre indagou em voz sumida:
- Quem é?

O tabelião nomeou-o:
- O Dr. Manuel Ambrósio da Silveira Torres Portugal, seu sobrinho.

O moribundo recostou-se mais nos travesseiros e, fazendo o gesto vulgarmente chamado de armas de São Francisco, expirou com essas palavras:
- Deixo-lhe uma banana!

Por essa razão, em Fortaleza, quando se perguntava a alguém o que havia deixado um parente rico acabado de morrer, a resposta era fatal: uma banana!

Esse rancor do Padre, transformado em cólera, ao sobrinho era reflexo de sério desentendimento que tivera com seu cunhado, o português Manuel Antonio Torres Portugal, pai de Manuel Ambrósio, por questões financeiras e de propriedade. O português o acusara de vender seu estabelecimento situado na cidade de Jardins, CE, e de não ter recebido o dinheiro da venda. Por sua vez, o padre o acusava de ser ingrato, pois o ajudara na sua chegada e instalação em Fortaleza vindo de Portugal. Essa desavença se estendeu por vários anos.

O velório começou no domicílio do Padre no mesmo dia e foi até o fim da tarde do dia seguinte à espera do filho que morava na região de Redenção, Ce. Puseram o caixão na sala de visita, ladeado por quatro velas enormes que deveriam arder até o fim e na porta de entrada da casa uma negra cortina com uma grande cruz prateada ao centro. Irmãs, filhos e filhas, cunhados e cunhadas choramingavam pelos cantos, rezando o terço freneticamente. A noite foi longa, a espera do dia seguinte.

Naquela época não existiam automóveis para derradeira viagem. Os enterros eram verdadeiras procissões, a pé, que podiam se estender por quilômetros. No dia seguinte, abria o préstito uma cruz negra de cujo pedestal pendia uma saia, que era um pano de veludo preto com franjas douradas. A frente ia o cura da Sé (catedral) paramentado e dois coroinhas, e logo atrás vinha o féretro, levado por quatro homens, vestidos de casacas compridas pretas, com cartolas de oleado reluzente e calças com listras vermelhas. Esses homens eram chamados de Gatos-Pingados.

Otacílio de Azevedo conta no seu livro Fortaleza Descalça (**) que os Gatos-Pingados eram um dos aspectos mais curiosos da Fortaleza antiga. Eram contratados para levar o defunto ao cemitério. O pesado esquife era equilibrado sobre duas tábuas em cujas pontas havia aldrabas seguras pelas mãos enluvadas dos sinistros carregadores, num ritmo macabro e cadenciado. O caixão dançava naquelas mãos num vaivém funambulesco, arrancando lágrimas nos olhos da população curiosa que se aglomerava no trajeto até o cemitério. Quando o cortejo era pequeno, costumava-se dizer “não deu quase ninguém, só alguns gatos pingados!”. Creio que o nome dado se deve a duas coisas: a vestimenta preta, como se fosse um gato preto, representa a má sorte que atingiu o defunto e o pingado é a cachaça (pinga) que esses homens tomavam antes e depois do enterro.   

O acompanhamento foi feito por homens e mulheres, todos de luto, silenciosos e compungidos. A procissão se estendeu por quase 1.000 metros, ao longo da rua das Flores, hoje rua Castro e Silva, (daí talvez a origem do antigo nome da rua). Tão grande percurso, realizado sob as intempéries da natureza e sobre um calçamento pouco convidativo às longas caminhadas, assumia contornos de sacrifício. Em certo momento, um dos gatos-pingados tropeçou em uma das pedras soltas e quase caiu, mas ajudado pelos outros o cortejo logo seguiu. A noite se aproximava e tochas e archotes foram acesas, costume antigo e lúgubre. O ritmo era tão lento que parecia que os vivos não tinham pressa em se verem livres dos mortos, nem estes pressa em se verem livres dos vivos.

Terminado o préstito, os acompanhantes retornaram pesarosos, silenciosos e tristes. No dia seguinte os parentes do Padre adotaram os costumes da época. Durante um mês, a família só saia de casa para assistir a missa do sétimo e do trigésimo dia. Só escrevia cartas tarjadas de preto e usava luto fechado – os homens, terno preto, inclusive a camisa, as mulheres, vestido comprido e totalmente negro, a cabeça coberta com um véu. Naquela época, desoladas viúvas e viúvos trajavam luto fechado pelo resto da vida.

O próximo artigo abordará estórias e “causos” do padre Pedro.

(*) BARROSO, Gustavo. Memórias. Liceu do Ceará. 3. ed. Fortaleza: Casa de José de Alencar - UFC, 2000.

(**) AZEVEDO, Otacílio de. Fortaleza descalça: reminiscências. 2. ed. Fortaleza: Casa de José de Alencar - UFC, 1992